domingo, 29 de maio de 2011

Um matrimônio arranjado na Igreja



1. Fiorela nasceu e foi educada família tradicional, nos princípios da fé católica, num ambiente familiar bastante rigoroso. Não obstante o seu ambiente dentro da família fosse promissor, Fiorela conheceu uma amiga dentista e logo se apaixonou por ela. Apesar de ser do mesmo sexo, namoraram às escondidas por cerca de um ano e resolveram estabelecer uma aliança duradoura. Porém, isso seria motivo de escândalo, se alguém da família ou da sociedade viesse a saber, que ela estava tendo um relacionamento homossexual. Então, encontraram um amigo gay e fizeram uma proposta encantadora para ele, ou seja, pagar uma boa soma de dinheiro, para haver com ele um casamento arranjado, na condição que após as núpcias, ele a deixasse imediatamente, para que Fiorela pudesse voltar à união de fato com sua amiga. Não houve lua-de-mel. O matrimônio não foi consumado, porque na mesma noite do enlace matrimonial, realizado na Igreja e no civil, separaram-se e ela voltou ao seu relacionamento lésbico. Só que isso não durou muito tempo. Um ano depois, brigaram e o relacionamento homossexual foi desfeito. Isso tudo, porque Fiorela caiu na real, descobrindo-se melhor na medida em que começou a namorar um homem. Divorciou-se do seu ex marido gay e contraiu casamento civil com outro homem, que segundo ela, a fez feliz o suficiente para haver uma nova saída. Mais tarde, apresentou o seu súplice libelo ao Tribunal da Igreja, na expectativa que seu matrimônio fosse declarado nulo.

2. Fiorela, ao ser interrogada no Tribunal, confirmou a versão do libelo, onde sublinhamos as seguintes afirmações de seu depoimento: “Sou filha de família tradicional do interior do Nordeste, com muita convicção nos seus princípios e que não aceitava que eu saísse de casa a não ser casada. Portanto, eu tinha que arrumar um namorado com quem casar, mas não queria casar, pois estava apaixonada por uma mulher. Não que seja homossexual, hoje estou bem definida e convivo maritalmente com um senhor com quem tenho uma filha e sou feliz. Porém, na juventude, a gente faz coisas erradas, das quais posteriormente se arrepende, e como eu queria muito ver-me livre do jugo paterno, procurei um rapaz que era gay e com ele contratei o casamento simplesmente para justificar que ia sair da casa do meu pai casada. Pagamos a ele, eu e aquela dentista com quem eu queria morar junto, para que nos submetêssemos a essa palhaçada e, uma vez feito o casamento, nos separamos, eu indo morar com aquela mulher e ele desaparecendo da minha vida... Solicito deste Tribunal a nulidade do meu matrimônio porque nunca quis casar, fazendo apenas uma representação teatral para justificar a minha saída do lar paterno”(fl. 25-26).

3. O seu marido, ao ser convocado duas para depor, não compareceu ao Tribunal, sendo declarado ausente no processo epigrafado.

4. As Testemunhas, ao serem interrogadas, assim se expressaram diante do fato:
“O casamento da minha filha foi uma farsa e eu fui enganado até o fim... Por isso, quando vi que ela namorava um rapaz bonito, me deixei iludir pela mentira e aceitei fazer o casamento e a festa. Porém, no mesmo dia quando os dois saíram depois de terminada a festa, fiquei sabendo de toda a trama organizada. Ambos se separaram e minha filha foi morar com uma mulher”(Pai de Fiorela);
“As duas amigas armaram um modo de iludir a nós todos, contratando um homem para fazer um casamento com ela. Meu pai fez festa, promoveu o casamento, inocente de tudo. Quando terminou a recepção, o seu suposto exposto entregou a minha irmã para aquela mulher e desapareceu. Nunca mais soubemos notícias dele”(Irmão de Fiorela);
“Soubemos que tinham namorado pouco tempo e que rapidamente se fez o casamento. Foi uma cerimônia em que ambos estavam muito nervosos e depois do matrimônio saíram e foi quando apareceu o boato de que a minha irmã tinha deixado o marido na porta e acompanhado outra mulher com quem viveu por uns dois meses união homossexual, depois cada uma foi para seu canto. Mais tarde, vindo ao Rio de Janeiro, se apaixonou pelo meu cunhado, contraiu matrimônio com ele e hoje tem uma filha. São felizes e ambos se dão muito bem”(Irmã de Fiorela);
“Depois de alguns meses, nos convidaram para o casamento deles, e todo mundo foi enganado porque o que aconteceu depois veio mostrar que aquele casamento foi feito por dois ótimos atores, que representaram muito bem um matrimônio de arranjo, uma verdadeira encenação teatral. Os dois não chegaram a passar uma noite juntos, pois ela fugiu com uma mulher, usando da Igreja para dar fachada a uma união lesbiana”(Cunhado de Fiorela).

5. Oito meses depois, o Tribunal Eclesiástico confirmou em segunda instância a nulidade do presente casamento, alegando que Fiorela simulou o seu enlace, pelo fato de excluir dele o próprio sacramento do matrimônio, por um ato positivo de sua vontade (can. 1101, § 2).

sexta-feira, 6 de maio de 2011

União civil de pessoas do mesmo sexo e batismo na Igreja Católica



“Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu legalmente ontem as uniões entre pessoas do mesmo sexo. A partir de hoje, devem ser aplicadas a esse tipo de relação as mesmas regras da união estável heterossexual, prevista no Código Civil”(O Globo, 06/05/11, p. 3).

Embora a decisão de ontem do STF não assegure a estes casais o reconhecimento dos filhos adotados por eles, isto não vai demorar muito.

Estamos presenciando um cenário irreversível neste imenso país verde-amarelo. De acordo com o último censo, o IBGE “registrou 60.002 casais gays vivendo sob o regime de união estável atualmente no país. Como a resposta é auto-declarada, estima-se que esse número seja maior, devido àqueles que são gays mas não se declararam assim” (O Globo, 05/05/11, p. 3).
E a posição da Igreja, como fica nesta decisão?

A minha pretensão aqui não é fazer uma análise teológica ou moral da situação do momento. Isto pode ser reportado aos nossos professores de teologia ou de moral. Esta pequena síntese tem a finalidade de lançar algumas orientações sobre a questão em tela, do ponto de vista do Direito Canônico, conforme seguem:

1. Segundo o cânon 208, todos os fiéis regenerados em Cristo pelo batismo são iguais em sua dignidade fundamental. Nesta dignidade fundamental, não entra a questão das diferenças entre os sexos feminino e masculino, ou ainda se a pessoa é homoafetivo ou não. O problema surge, na medida em que a escolha por parceiros do mesmo sexo foge da normativa do atual Código. A exigência colocada no cânon 1055 é taxativa, ao afirmar que o “pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio de toda a vida..., entre batizados foi por Cristo Senhor elevado à dignidade de sacramento”. Por mais que se queira forjar uma interpretação jurídica do ordenamento jurídico da Igreja, não há como reconhecer as uniões homoafetivas, como sacramento do matrimônio.

2. Tradicionalmente, a união irregular resulta da união ou situação de vida instaurada por um varão e uma varoa, que tem uma certa semelhança com o estado legítimo de vida matrimonial, cujos contraentes, à diferença do concubinato, tem a intenção ou ânimo marital que se prolonga por um tempo, ou até mesmo para toda a vida. Uma união deste gênero sacramento na Igreja.
A doutrina da Igreja insiste que toda a relação sexual genital deve manter-se no quadro do matrimônio. Por consequência, a união irregular não seria legítima, a não ser que se instaurasse um consórcio de vida perpétuo entre um homem e uma mulher e mais tarde fosse legitimada pela Igreja, como sacramento do matrimônio.

3. Até pouco tempo atrás, se falava dessas uniões, conjugadas entre o sexo masculino e feminino. Na atual conjuntura do Povo de Deus, porém, surge uma gama de novas entidades familiares, presentes no cenário das pessoas batizadas na Igreja e que delas não se afastaram por um ato formal. Neste horizonte, as uniões homoafetivas, ou casais homoafetivos, por tabela, são equiparadas às uniões irregulares, justamente porque podem ser reconhecidas pelo Estado, porém, não reconhecidas pela Igreja, porque para ser matrimônio, a condição básica é que tal união seja entre o homem e a mulher (can. 1055, § 1).

4. Na hipótese de uma criança ser gerada por uma mãe numa dessas uniões, ou ainda na hipótese da adoção, que em breve poderá legitimada pelo Estado, se pode questionar a educação a ser dada aos adotados por dois “pais” ou por “duas mães”. Também se questiona se tais casais terão um espaço de boa acolhida no meio da sociedade e da comunidade de fé. No entanto, do ponto de vista jurídico, o Código de Direito Canônico é taxativo, quando afirma que “os ministros sagrados não podem negar os sacramentos àqueles que os pedirem oportunamente, que estiverem devidamente dispostos e que pelo direito não forem proibidos de os receber”(can. 843, § 1). Em outras palavras, é uma obrigação (dever) dos ministros sagrados, que corresponde a um direito da pessoa humana. Diga-se de passagem que o batismo é um direito natural da pessoa humana, que a rigor, independe da religião de seus genitores ou adotantes.

5. Várias hipóteses de casais homoafetivos poderiam ser configuradas no atual cenário da sociedade. Por exemplo, se Valentina se apaixona por Giovana, se unem, se casam no civil e como não teriam condições físicas de gerar um filho, poderiam tranquilamente adotar uma criança. O mesmo se poderia dizer de Vicente, que se apaixona por Mário, enamora-se, se dá em noivado, se casa com ele no civil e não podendo gerar uma filha, pode posteriormente adotar uma criança. Por tradição, se são católicos praticantes, certamente não gostariam de ver a sua filha a ser adotada, crescer sem o batismo.

6. De acordo com o ordenamento da Igreja Católica, estas uniões podem batizar o seu filho ou o seu adotado na Igreja. Diante disso, surge no ministro a dúvida: como transcrever os nomes no livro do batismo? No lugar da mãe, deveria ele escrever Valentina ou Giovana, ou as duas pessoas no mesmo espaço? No lugar do pai Vicente, deveria ele escrever o nome de Vicente ou de Mário? Ou os dois nomes na mesma linha, ou ainda o nome de Vicente como pai e o de Mário como mãe?

7. Nas empresas, se a pessoa não quiser mencionar o seu verdadeiro sexo, seria possível usar um nome social no crachá, mantendo, contudo, o nome civil de seu registro na carteira de trabalho e no contrato. Mas na Igreja, segundo os livros de batismo tradicionais, não há espaço para os dois nomes como pais, nem dos dois nomes como mães. Então, que procedimento se deve seguir?

8. O Código de Direito Canônico diz que “o pároco do lugar em que se celebra o batismo deve registrar no livro de batizados, cuidadosamente e sem nenhuma demora, os nomes dos batizados, fazendo menção do ministro, pais, padrinhos, bem como testemunhas, se as houver... Tratando-se de filho de mãe não-casada, deve consignar o nome da mãe, se consta publicamente sua maternidade ou a ela o pede espontaneamente,... deve-se também inscrever o nome do pai, se sua paternidade se comprova por algum documento público ou por declaração dele... nos outros casos, inscreva-se o que foi batizado, sem fazer nenhuma indicação do nome do pai ou dos pais”(can. 877, § 1 e 2). No caso específico “de filho de adotivo, inscrevam-se os nomes dos adotantes, como também, ao menos se assim se faz no registro civil da região, os nomes dos pais naturais..., atendendo-se às prescrições da Conferência dos Bispos”(can. 877, § 3). No caso do Brasil, a Conferência Episcopal segue a mesma normativa supramencionada.

9. Segundo o cânon 877, § 3, deduzimos que existe uma brecha para a devida inscrição dos nomes dos dois pais ou duas mães adotantes, mesmo que isso ainda não seja contemplado no espaço físico dos livros de batismo. E mesmo que os livros não contemplem esta possibilidade, se poderia fazer uma anotação suplementar no espaço reservado às observações, inscrevendo ali os nomes do casal homoafetivo.

Portanto, se pode questionar sobre o exemplo que os casais homoafetivos darão a seus filhos, adotados. Na mesma linha de pensamento, se poderia questionar o exemplo de todo ou qualquer casal que contrai validamente o matrimônio na Igreja, mas que nem sempre é bem sucedido na educação de sua prole. Contudo, se houver a disposição dos tutores de introduzir esta pessoa na caminhada cristã, independentemente de suas condutas morais, a Igreja não tem o direito de negar o batismo. A culpa pode ser dos tutores, porém não da criança adotada, que poderá seguir um rumo diferente de tais casais, na medida em que cresce e se desenvolve dentro da sociedade e da Igreja. Caso contrário, lhe é negada um direito natural, que na Igreja católica, torna-se um impedimento para os demais sacramentos.